Quando a tia comentou sobre a faxina executada no fim de semana, o brilho saiu dos olhos de Helena como faíscas radioativas. Depois de limpezas, quando eram abertos os baús da família, é que apareciam as coisas mais fantásticas. A tia prometeu uma boneca. Ela não era mais criança. Mesmo assim alimentava a fantasia pueril de receber presentes antigos, que guardavam lembranças, sentimentos de uma época em preto-e-branco.
Todo esta fantasia acabou sumindo. Evaporou no momento em que Helena viu a tão sonhada boneca da tia. No lugar de cachinhos e bochechas rosadas, a mulher carregava a boneca mais feia já vista. Não, ela não era feia. A roupa era clássica, muito limpa, um vestido bem costurado. O cabelo estava no lugar, a porcelana se encontrava em perfeito estado. O problema eram os olhos. Um par de olhos negros que imprimiam um ar maligno ao ser inanimado. Se o mal possuísse uma espécie de materialização, aquela boneca seria o símbolo máximo.
Helena aceitou o presente. Levou a boneca para casa, sentindo o peso de uma maldição e a onda de azar que impregnou como uma fumaça negra. Tudo começou a dar errado. Helena era recepcionada pela boneca todos os dias. Abria a porta e encontrava a nova dona de todo o espaço, ajeitada no sofá, o olhar fixo, a fisionomia séria. Passou dias sem dormir, ouvindo barulhos estranhos, enxergando sombras. Imaginando as vinganças que seriam impostas caso ela, simplesmente, jogasse a maldita no lixo.
Ficou com medo. Consultou algumas pessoas e a salvação indicada parecia ser a mais óbvia: “Abandona a boneca, mas faz isto em uma igreja. Pode ser mais seguro. Por via das dúvidas...” Como havia planejado uma visita à mãe, traçou todo o plano. Largaria a feiosa na igreja mais próxima. Só esqueceu um detalhe importante: a igreja mais próxima era a Catedral Metropolitana, um prédio histórico da cidade, freqüentado dia e noite por religiosos de todo o estado. Mesmo temerosa, resolveu levar o plano adiante. E foi com a respiração presa e com um movimento do braço esquerdo, que tirou rapidamente a boneca da sacola plástica e a colocou grudada no banco de madeira. Não esperou mais nada. Foi embora.
Depois de dar cinco passos, em plena Catedral, começou a ouvir o burburinho, que aumentou na medida em que mais e mais pessoas chegavam perto do banco, para analisar aquele criatura branca de porcelana, sentada, com aqueles mesmos olhos. Alguns fizeram o sinal da cruz, outros olharam ao redor e começaram a chamar os suspeitos. Uma criança começou a chorar.
Quando alcançou a rua, Helena correu. Correu o quanto pôde, o mais longe possível. Longe daqueles olhos ameaçadores. Não sabe o que foi feito da boneca. Se ela está guardada, se foi destruída ou se perambula infinitamente pelas ruas próximas da Catedral. Até hoje, adormece de olhos abertos. E promete a si mesma esquecer toda esta história.
novembro 17, 2003
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