junho 23, 2009

Berta sofreu um desastre numa estrada faz seis anos. Ficou com uma perna destroçada, com múltiplas fraturas expostas, teve osteomielite, cogitou-se amputá-la, salvou-a por fim mas perdeu parte do fêmur, que teve de ser encurtado, razão pela qual desde então manca um pouco. Não tanto que não possa usar sapatos de salto alto (e usa-os com graça), mas o salto de um sempre tem que ser um pouco mais comprido e grosso do que o do outro, manda fazer especiais. Ninguém nota esses saltos desiguais se não estiver prevenido, mas percebe-se que ela manca um pouco, sobretudo quando está esgotada ou em casa, onde não faz esforços para enobrecer o modo de andar: abandona-se ao fechar a porta atrás de si e guardar a chave no bolso, já não dissimula, duplica-se a manqueira. Também ficou com uma cicatriz no rosto, é coisa leve, tão leve que não quis corrigi-la mediante cirurgia, é como uma meia-lua na bochecha direita que às vezes, quando dormiu mal ou teve um dissabor ou está muito cansada, escurece e se torna mais visível. Então, durante uns instantes acho que tem uma mancha, que se sujou, e lhe digo isso. “É a cicatriz”, ela me lembra, que ficou azul ou roxa.

Coração tão branco, de Javier Marías

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